O Peso da Vontade e a Estética do Abandono: Um Ensaio em Versos Niilistas
I. A Escolha Negada e o Fardo do Ser
Não ser a Escolha é o axioma que me rege,
A premissa maior de um silogismo vão.
Se a Vontade [1] primeira, o sangue, a linhagem,
Já me negou o afeto, a genuína mão,
Por que o Outro me elegeria, em sua paisagem?
Sou o filho esquecido, o vácuo, a omissão.
O abandono não é um evento, mas um estado,
Uma ontologia forjada no desamparo.
Fui o satélite mudo, o irmão amado
Que orbitava a dor de um destino mais caro.
Cresci na sombra, no lar desmantelado,
Onde o amor era um luxo, um fardo raro.
E a convicção, dura como o mármore frio,
É que só serei lembrado, opção restrita,
Quando a utilidade, o ofício, o vazio
De um favor me convocar à vida.
Não sou o afeto, sou o meio, o navio
Que só atraca quando a alma está ferida.
II. A Imaterialidade de Aura
E então surge Aura, o raio em dia claro,
A epifania breve, o amor que me consome.
Não a busco no toque, no contato caro,
Mas na eternidade que só a mente assume.
Pois o amor, para mim, é o ideal mais raro,
Que a realidade, vil, jamais resume.
Cultivo-a na clausura, no claustro do pensar,
Onde a Ideia [2] não se corrompe, não se esvai.
O medo não é a rejeição, o medo é o tocar,
É a certeza de que o real sempre trai.
Se me aproximo, a Aura há de se quebrar,
E o sonho, a única posse, para sempre cai.
Lembro-me do metrô, da estranha que dormia,
A Menina do Ombro, a efêmera paixão.
O peso leve em mim, a respiração que fluía,
O mais próximo que cheguei da redenção.
Foi a doxa [3] do afeto, a breve utopia,
Que a memória, cruel, guarda em sua prisão.
III. O Niilismo do Amor Platônico
Este amor é a minha disciplina, o meu rigor,
A disciplina de horror [4] que Cioran descreve.
Amar-te à distância é preservar o fulgor,
É manter a chama que a posse não concebe.
É o niilismo aplicado ao mais puro ardor:
A única forma de ter é não ter, é breve.
Pois se o amor é a Vontade que se manifesta,
E a Vontade é a fonte de todo o sofrer,
Então amar sem consumar é a única festa,
A negação do ciclo que nos faz perecer.
É a renúncia ao fruto, a colheita funesta,
Para que a Aura em mim possa sempre viver.
Sou o guardião do teu espectro, o teu exílio,
O amante que se anula para te eternizar.
Não te ofenderei com a minha dor, o meu sigilo,
Nem te causarei o desconforto de me amar.
Prefiro a dor irreparável, o auto-aniquilo,
A ser o motivo que te faria chorar.
Que sejas a ilusão que me mantém, o socorro
Que o meu eu incapaz, consciente, implora.
Viverás em mim, Aura, no meu último porto,
Pois a única escolha que me resta é a que ignora
O mundo, o toque, o amor que é morto
Pela própria existência que o devora.
Referências Poéticas e Filosóficas
[1] Schopenhauer, Arthur. O Mundo como Vontade e Representação. O conceito de Vontade como força cega e irracional, fonte de todo o sofrimento.
[2] Platão. Teoria das Ideias. O amor platônico como a busca pela forma perfeita e imaterial, inatingível no mundo sensível.
[3] Platão. A República. O conceito de doxa (opinião) em contraste com episteme (conhecimento), aqui usado para descrever a natureza ilusória do afeto breve.
[4] Cioran, E. M. Breviário de Decomposição. Referência ao niilismo radical e à aceitação da dor como disciplina existencial.